quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Uma Crônica Pronta: O guarda-chuva

Uma crônica de gaveta para lembrarmos da importância de nossos pensamentos. "Boa leitura!".

Era um senhor um tanto reservado, solteiro, com ingresso comprado para embarcar na melhor idade (cá entre nós, a melhor idade costuma ser aquela que a gente não tem no momento). Vizinho por pura arbitrariedade territorial e figura conhecida pela simpatia de dar inveja aos retirados. Todos os dias passava por mim, e sem mudar de expressão levantava a voz como quem tinha que levantar uma tonelada e deixava escapar dos lábios algo parecido com um “ooopa”, seguido de uma embromação, que não era exatamente o meu nome, nem o de nenhum dos cumprimentados pelo vizinho.

Ocorreu foi que um dia, algo que não estava lá antes entrou em cena, durante os passos que precederam o encontro, parecia que alguma coisa daria ao vizinho a chance de cruzar o meu caminho sem o ardor da saudação. Chovia, avistei de longe o cidadão que vinha em minha direção. Ele trazia na mão algo que seria naquele dia mais que o abrigo da chuva, era uma espécie de livre-arbítrio em versão estampada e automática. Ao passo que ele chegava mais perto, o seu amigo guarda-chuva descia mais. No início cobria os olhos, depois continuou descendo, até que cruzou o meu caminho com o rosto coberto. Sim, ele estava livre da perturbação momentânea que antecede a simples decisão de cumprimentar ou não àquele que vem em sua direção.


Resolvi lançar mão de todos os “ooopa’s” recebidos antes. Pensei: - então eram todos de veneta, um árduo dever criado por uma ética imaginária de vizinho. Com mais calma, voltei atrás, pensando bem, lembro-me de ter sofrido a angústia da dúvida quando vinha lá de longe aquele conhecido, que nem era tão conhecido assim, a partir daí você só têm alguns poucos segundos para decidir, falo ou não falo? Quando o sujeito se aproxima, te lança aquele olhar que se por acaso coincidir com o momento em que você está olhando, existem grandes chances de ter ali um cumprimento, se não, é necessária muita bravura de um dos envolvidos pra não dar a vitória ao “eremitismo”. Ainda dizem que o “homem é um animal social”.


Pensemos então: quantos de nós pensam no "bom dia" antes de lançá-lo àquele que vai em direção oposta? A ciência avançou no sentido de perceber o quanto os nossos pensamentos implicam em nosso organismo. Já descobrimos que a atividade cerebral gera impulsos de energia, de maneira que transmutamos fluidos magnéticos, da mesma forma que processamos o ar respirado. Será que vamos persistir na analogia e lançar no ar apenas gás carbônico?

É uma grande mudança de perspectiva notar que o “boa tarde”, o “bons sonhos”, o "boa leitura" e, principalmente, o “boa prova” podem ser promovidos de votos a ações efetivas. Isso quer dizer que deixamos de desejar e passamos a interferir. É claro, o salmão não passou a migrar para a água doce na época da reprodução depois da descoberta dos pesquisadores. Já o faziam antes, e nosso pensamento também. A nossa intuição não nos deixa duvidar. Quantas vezes deixamos escapar um “tomara que caia” quando um apressado esbarra em nosso ombro, ou pensamos alto um “vai errar” quando o jogador do outro time vai cobrar o pênalti? Na mão inversa, podemos usar o nosso pensamento de maneira positiva, impregnar o nosso ar com vibrações positivas. O cumprimento deve então ser promovido de simples ritual para ação invisível. A fala é a materialização, imagem sonora, representativa da nossa vontade.

Pois bem, nadamos no mar de nossos próprios pensamentos e podemos nos dar conta que cuidar do meio ambiente quer dizer começar por nossa atividade mental. Por falar em água, esqueci o vizinho lá na chuva. E se eu passar por ele amanhã? Devo iniciar ou retribuir o “ooopa”? Por hora posso deixar a decisão de lado, afinal de contas, o tempo ainda não mudou e pra todos os efeitos ele, o guarda-chuva, estará conosco mais uma vez.